domingo, 4 de maio de 2008

Polícia perita

Correio da Bahia Jaciara Santos

Como nos filmes de suspense, técnicos forenses baianos ajudam a esclarecer casos semelhantes ao de Isabella Nardoni
Hipnotizado diante da TV por conta do caso Isabella Nardoni, o baiano incorporou ao vocabulário, nas últimas semanas, termos como luminol, espectografia, perfil genético e crimescope. O que muitos não sabem é que em Salvador, ali na Avenida Centenário, longe dos holofotes e das câmeras, os peritos do Departamento de Polícia Técnica ajudam todos os dias a elucidar crimes tão intrigantes como o da menina paulista.
Mas, mesmo sem alcançar na mídia o espaço atualmente ocupado pela congênere paulista, a polícia científica baiana vive, de vez em quando, seus minutos de fama: no dia 21 deste mês, por exemplo, o Instituto de Criminalística Afrânio Peixoto (Icap), órgão do Departamento de Polícia Técnica, mereceu reportagem no jornal La Presse, de Montreal-Canadá, na qual é comentada a aquisição de equipamentos de última geração para os exames de balística.
São quatro os órgãos que integram a polícia científica baiana: o Instituto de Identificação Pedro Melo, o Laboratório Central de Polícia Técnica, o Instituto Médico-legal Nina Rodrigues e o Instituto de Criminalística. Juntas, as quatro unidades produzem por mês quase 1,5 mil laudos, peças que vão ajudar a esclarecer algum tipo de crime, informa a perita criminal com especialização em papiloscopia Iracilda Santos Conceição, diretora do Pedro Melo.
Dentre as “estrelas” do órgão, Iracilda destaca o Sistema Automatizado de Identificação por Impressões Digitais (Afis). E não é para menos: a ferramenta permite a identificação criminal de pessoas indiciadas em qualquer estado do país. “Em no máximo 24 horas é possível fornecer o resultado da pesquisa, através do cruzamento de dados do próprio instituto ou do cadastro nacional centralizado em Brasília”, garante. Qualidade - Sem o glamour da ficção e longe do frisson provocado pelo crime do Edifício London, no silêncio frio do Laboratório Central de Polícia Técnica (LCPT), a equipe de 16 peritos do órgão se debruça constantemente com casos tão chocantes quanto o da menina paulista.“São casos de estupros seguidos de morte, às vezes tendo crianças como vítimas”, revela a diretora do laboratório, a bióloga Eliana Araújo Azevedo, funcionária de carreira do DPT, com 31 anos de casa. Há também as situações de esquartejamento, esganadura e até de pessoas enterradas vivas, enumera.
Reconhecido até fora do país, o LCPT sempre se destaca nas avaliações anuais de organismos internacionais como a União Européia. “É uma espécie de ISO”, compara, numa alusão ao certificado conferido a organizações que se destacam pela qualidade dos produtos oferecidos.De olho na melhoria do desempenho, ela já cobrou do secretário César Nunes (Segurança Pública) a aquisição de um novo seqüenciador de DNA. O equipamento vai ampliar a investigação de crimes sexuais, hoje restrita aos casos em que há suspeitos para a comparação do material genético (suor, saliva, esperma) colhido na vítima.
Peça freqüentemente vista em filmes que exploram a investigação científica como tema, o aparelho vai facilitar a construção de um banco de dados. “Quando o autor reincidir e for preso, terá seu DNA confrontado com o material arquivado”, explica a diretora do LCPT.
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Icap investigou morte de PC Farias
A informação não é exatamente inédita, mas nem por isso perde sua importância: o DPT da Bahia colaborou com a polícia judiciária alagoana na investigação da morte do empresário Paulo César Farias, o todo-poderoso tesoureiro da campanha vitoriosa de Fernando Collor à Presidência em 1989.
Saíram da Coordenação de Balística do Instituto de Criminalística Afrânio Peixoto (Icap) os laudos referentes à trajetória dos projéteis que mataram PC e a namorada Suzana Marcolino, desconstruindo a fantasiosa tese de homicídio seguido de suicídio e colocando pelo menos uma terceira pessoa na cena do crime.
Tão aparelhado quanto a polícia científica de São Paulo – elevada ao estrelato por conta do assassinato de Isabella –, o Icap dispõe da maioria dos equipamentos usados no caso. “De tudo o que se falou até agora, só não dispomos do crimescope”, afirma a diretora do órgão, Evandina Candida Lago, 35 anos de profissão. Também chamado de “luz forense”, o equipamento é, na verdade, um canhão de luz ultravioleta usado para detectar substâncias como sangue, sêmen e pêlos.
Mas onde falta a tecnologia entra a criatividade. O Icap improvisou sua própria luz forense. “Quando o caso requer uma iluminação especial, nós usamos um holofote adaptado para a situação que nos dá um resultado semelhante ao do crimescope”, garante a diretora, bacharela em direito e perita criminal há 35 anos. De todo modo, a solicitação para a compra do equipamento já está em mãos do titular da SSP, ela adianta.
Com tanta excelência, como explicar que dos 554 homicídios registrados nos três primeiros meses deste ano apenas 116 estejam elucidados? Esse é um mistério que somente Sherlock Holmes pode resolver.
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Maleta cheia de segredos
Como de uma cartola de mágico, não dá para prever o que vai sair da maleta do perito de local de crime. Lanternas de vários tamanhos, óculos especiais (para visualizar fragmentos), substâncias reagentes como o luminol – que indica vestígios de sangue –, lupa, pincel, luvas cirúrgicas, pinça, trena, sacos plásticos e tubinhos com tampa para coleta de amostras.
Entretanto, todo esse arsenal, mais a intuição do perito podem resultar em nada. “Se houver qualquer mudança na cena, o laudo pode não refletir a realidade”, adverte a diretora do Instituto de Identificação Pedro Melo, no que é apoiada pela colega Evandina Lago, gestora do Icap: “Sem preservação, não dá para confiar no que se vê num local de crime”, entende.
Segundo as gestoras, policiais militares e civis, às vezes, terminam contribuindo para descaracterizar a cena. “Quando o perito chega, quase sempre, o agente da delegacia da área já mexeu no corpo para pegar o documento”. E o que poderia ser uma inocente ação pode comprometer definitivamente toda uma investigação. Portanto, esqueça tudo o que você viu no último episódio de CSI ou no noticiário sobre o caso Isabella. Se o local for descaracterizado, o resultado de uma perícia pode levar para longe da verdade.
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Crimes elucidados pela ciência
Alguns casos parecem ter saído de um livro de sir Arthur Conan Doyle, criador do lendário Sherlock Holmes. Ou, quem sabe, de um episódio de CSI (Criminal Scene Investigation), seriado americano no qual misteriosos homicídios esbarram na perspicácia de detetives e na precisão de laudos periciais. Nada disso. Todos foram elucidados pela polícia científica baiana, comprovando o que os peritos não cansam de repetir: não existe crime perfeito.
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Da ficção à realidade
Dia 22 de janeiro de 1979, segunda-feira, pouco antes das 15h. No auge como um dos principais espaços culturais do centro de Salvador, o Cine Guarani – rebatizado nos anos 1980 como Glauber Rocha – batia recordes de público com a exibição de Tubarão (1975), sucesso de bilheteria de Steven Spielberg.
Enquanto na telona jorrava tinta vermelha por entre as mandíbulas do personagem-título do filme, na salinha da administração o sangue era real e provinha das 16 facadas aplicadas no gerente Florêncio Andrade Santos. Ao lado do corpo, um bilhete com a mensagem “Isto é para você não mexer com a mulher dos outros” e a assinatura “J.A.V.”
Demorou um pouco, mas o caso foi desvendado. Não era um crime passional, como sugeria o bilhete. Tratava-se, na verdade, de um latrocínio executado pelos policiais militares Gonçalo José Mascarenhas e Antônio Carlos Machado. Movidos pela cobiça, os autores planejaram tudo cuidadosamente, mas não contavam com a argúcia do perito Elysio Antônio de Medeiros Júnior, que examinou a cena do crime.
Júnior descobriria que a frase fora copiada de uma revista de distribuição gratuita contendo as sinopses dos filmes em exibição. Detalhe: a assinatura “J.A.V.” fora inspirada no título original da película em cartaz – Jaws, tubarão, em inglês.
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Esquartejado no Carnaval
Calada, discreta, a empregada doméstica Lourdes Maria da Silva Sena, 23 anos, era o ideal de qualquer dona de casa. Até protagonizar uma história de horror no sábado do Carnaval 1991: o esquartejamento do radialista Roberto Carlos da Silva, 26, namorado da patroa dela. Contrariando a opinião pública, que não conseguia enxergá-la no papel de assassina, Lourdes acabou confessando o homicídio seguido de ocultação do cadáver. Mas, mesmo que não assumisse, seria incriminada pela profusão de elementos colhidos na cena do crime.
A reconstituirão do crime (um dos recursos usados pela polícia científica) foi decisiva para esclarecer o caso. Durante a simulação, a acusada mostrou minuciosamente como matou e esquartejou o radialista, apontando detalhes não notados pelos investigadores. O esguicho de sangue no teto do quarto, resultado do golpe de faca no pescoço da vítima é um deles. O local foi lavado, mas as manchas remanescentes eram consistentes com o relato.
Embora tendo como defensor um dos mais argutos criminalistas de Salvador – o advogado Ney Ferreira –, ela foi condenada em júri popular. Pegou 13 anos de reclusão.
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Adolescência interrompida
O adolescente Lucas Vargas Terra, 14 anos, saiu de casa na noite de 21 de março de 2001 em direção à Igreja Universal do Reino de Deus, do bairro de Santa Cruz. De lá, seguiu para o templo do Rio Vermelho, acompanhado do pastor auxiliar Sílvio Roberto Galiza, seu amigo. Não voltaria a ser visto com vida.
Na manhã do dia 23 de março de 2001, o corpo dele foi encontrado num terreno baldio na Avenida Vasco da Gama, próximo ao Hospital Geral do Estado. Estava carbonizado. Somente 12 dias após o sumiço, o menino seria reconhecido no IMLNR por familiares. A identificação só foi possível mediante pesquisa de DNA.
De acordo com o laudo número 2001006403/01 do DPT, Lucas foi posto fora de combate, amordaçado e transportado até o terreno baldio, onde teve o corpo encharcado com algum produto inflamável e incendiado. A morte foi causada por carbonização.
Perícia na Iurd/Rio Vermelho detectou pedaços de madeira do tipo compensado, semelhantes aos encontrados sob o cadáver de Lucas. No templo também havia partes de um tecido acetinado, de cor clara, igual ao fragmento de pano achado junto ao corpo. As evidências colhidas na cena do crime foram decisivas para a condenação de Galiza. Hoje, ele admite a participação no caso de duas outras pessoas: os pastores Joel Miranda, 40 anos, e Fernando Aparecido, 28.

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